domingo, 4 de março de 2018

Idosos: O que significa ser a última geração que viveu o mundo analógico


Você se lembra de quando se via sem nada para fazer e contemplava o ócio, sem sacar o celular do bolso? Essa é uma reflexão que tende a acabar junto com aqueles que vivenciaram o mundo off-line 

Quando foi a última vez que você se viu sem absolutamente nada para fazer e contemplou o ócio? Momentos como esse têm se tornado cada vez mais raros no cotidiano. O motivo é que, mesmo naqueles minutos de espera do ônibus ou da chegada de um amigo no bar, sua atenção é desviada para o celular. 

Muito em breve, esse tipo de reflexão sequer existirá. A última geração que viveu o mundo completamente analógico —e portanto pode comparar a espera off-line e a on-line—, não terá mais representantes em cerca de 40 ou 50 anos. E as experiências pessoais sobre como a vida era antes e depois do digital desaparecerão com ela. 

Essa é a provocação do jornalista canadense Michael Harris. Autor do livro “O Fim da Ausência”, lançado em 2014, Harris fala sobre a última geração “bilingue” — capaz de traduzir o mundo analógico para o digital, e vice-versa — e como essa será a última geração a conhecer o que chamamos de “não fazer nada”. 

A geração em transição 
Harris defende que qualquer pessoa que tenha nascido antes de 1985 faz parte da última leva de seres humanos que sabe o que é a vida sem internet — “estão fazendo a peregrinação do antes para o depois”, escreve Harris. 

O “antes” é um mundo em que a comunicação era mais lenta e acontecia de maneiras completamente diferentes, no qual havia menos tipos de entretenimento e os pensamentos e opiniões pessoais das pessoas recebiam menos atenção pública. 

Para Harris, os indivíduos que conheceram o mundo analógico têm uma habilidade única — a capacidade de notar como a introdução da tecnologia no mundo mudou a maneira como as pessoas se relacionam. E esse é o público alvo do livro, de acordo com ele. 

O maior prejuízo que a ubiquidade da tecnologia vai causar às gerações futuras, de acordo com o autor, é a ausência da sensação de ausência. O estado de conexão permanente, com o celular ligado no bolso, nos impede de estar definitivamente sozinhos. 

Ainda assim, Harris fala disso mais como observador e menos como crítico. O autor assume uma postura sobre o “antes” e o “depois” que não tenta classificar um ou outro como melhor ou pior, mas só como “como as coisas são”. 

Harris não foi o primeiro a falar sobre como a tecnologia nos afasta do ócio. O comediante norte-americano Louis C.K., em uma entrevista em 2013, refletiu sobre a ausência de momentos solitários nos tempos modernos — e, de maneira tragicômica, sobre como nos ocupamos com a tecnologia para afastar reflexões existenciais que podem trazer frustração. 

 Louis C.K. Comediante norte-americano, em entrevista ao programa Late Night With Conan O’Brien:
“Você precisa cultivar a habilidade de ser você mesmo e não estar fazendo nada. É isso que os celulares estão tirando, a habilidade de só ficar sentado [fazendo nada]. Isso que é ser uma pessoa. Porque por baixo de tudo na sua vida tem aquela coisa, aquele vazio — eterno. O conhecimento de que nada vale a pena e que você está sozinho. Está lá, no fundo. E às vezes quando tudo sai da frente, você não está assistindo nada, no seu carro, sozinho, você pensa ‘Ah, não, lá vem. Estou sozinho’. Começa a vir. Só aquela tristeza. A vida é triste demais, só estar nela…”
 Apesar do tom bem humorado, a provocação de C.K. se conecta com as reflexões de Harris no livro.
 “Logo, ninguém vai se lembrar da vida antes da internet. [...] Os silêncios provenientes de ‘sonhar acordado’ nas nossas vidas foram preenchidos: as solidões sufocantes foram extintas. Não há ‘tempo livre’ verdadeiro quando você está com seu celular”, diz o livro. 

Michael Harris No livro “The End of Absence”, de 2014:
“Na medida em que adotamos os dons da tecnologia, normalmente falhamos em considerar o que a tecnologia pede de nós em troca — os pagamentos sutis, que dificilmente notamos e que fazemos em troca de seu maravilhoso serviço. [...] Por que nos importaríamos em notar o fim da solidão, da ignorância, da ‘falta’? Por que deveríamos nos importar que a ausência desapareceu?” 
O autor argumenta que vai faltar, no futuro, a capacidade de deixar a mente correr livremente, de se sentir entediado e a importância das descobertas feitas nesses momentos. Mas que só essa geração “híbrida” vai sentir falta dessas coisas como parte da experiência humana. 

Valor próprio definido por curtidas 
Outra mudança, escreve, está na maneira como avaliamos nosso valor como pessoas — que, nos nossos tempos, frequentemente está conectado com números em redes sociais. A capacidade de observar isso, diz, também é exclusiva dessa geração que está passando pela transição entre dois mundos. 

“Acho que tem a ver com a noção de prestação de contas [de si mesmo] online. Então [há a ideia de que] se um tweet ganha centenas de reweets, deve significar que meus pensamentos valem [alguma coisa]. Se minha foto é muito curtida, deve significar que sou bonito. Uma das coisas que me preocupa na conexão permanente é que perdemos a habilidade de decidir, por nós mesmos, o que pensamos sobre quem somos”, disse Harris, em entrevista ao site Quartz. 

O livro de Harris, como muitos do tipo que analisam as mudanças sociológicas impulsionadas pela revolução digital, foi escrito depois que o autor decidiu tirar uma folga de um mês de qualquer aparelho digital. 

Seu período sabático, no entanto, não despertou nenhuma habilidade adormecida ou desencadeou um momento de epifania: ele concluiu que uma pausa ocasional pode ser útil, embora quase inviável para a maioria das pessoas. 

“Acho que o que você consegue [de um período de abstinência do digital] é uma luz interior mais rica e a habilidade de se enxergar de uma perspectiva mais crítica. Porque, se você está no meio de algo, nunca dá para ver propriamente”, disse, sobre a experiência.

Fonte: Nexo Jornal, Colaboração: Houw Ho Ling (18/07/2017)

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